Emboscada transformou barra brava em craque do rúgbi em cadeira de rodas
Felipe Pereira
Do UOL, em Toronto (CAN)
Charly Neme considera sua história de vida um exemplo – exemplo do que não fazer. Quando tinha 15 anos o capitão da seleção colombiana de rúgbi sobre rodas era "capo" de um grupo de 28 adolescentes barra bravas do Milionarios, como são chamados os torcedores violentos do clube de Bogotá. Tudo mudou numa emboscada de rivais do Nacional de Medellín.
Valentão, Charly ignorou que o número de oponentes era duas vezes maior. Preparou-se para briga sacando a faca que carregava, algo inútil quando o adversário tem um revólver. O tiro entrou pelo braço esquerdo, atravessou o peito e saiu pelas costas, destruindo a quinta vértebra. Desde aquele 4 de outubro de 2007 ele não sente as pernas.
Mas na hora não foi numa cadeira de rodas que Charly pensou, e sim num caixão. Inerte no chão e com a roupa empapuçando de sangue lamentou-se. "Vou morrer tão jovem, sem fazer tantas coisas, sem ser ninguém na vida",recorda. Ele não morreu e se tornou gente. Aos 23 anos é capitão da seleção colombiana de rúgbi que está em Toronto disputando o Parapan. O atleta tem as melhores estatísticas de defesa da América Latina.
Charly afirma que além de conquistas esportivas, virou testemunha do que as escolhas erradas podem causar. Mas antes deste ciclo se completar houve momentos bem complicados. Os primeiros 30 dias foram no hospital e quando recebeu alta o ex-barra brava estava com depressão. Os meses seguintes foram difíceis e pedagógicos.
A rotina de reabilitação para reaprender a comer, tomar banho e se trocar ensinaram a Charly que ficar reclamando não resolvia. Ele entendeu que precisava tocar a vida adiante. A tarefa ficou menos difícil em 2010, quando o rúgbi em cadeira de rodas cruzou seu caminho. Foi amor a primeira vista.
Em um ano Charly estava na seleção colombiana e logo virou capitão. Também encontrou algo que fez falta no passado, amizades sadias. Para arrematar, começou a viajar mundo afora para competir, algo jamais imaginado.
Ele está em Toronto por causa do esporte e agradece muito por ser atleta. Não se importa que o antebraço queima para frear a cadeira de rodas e que as mãos machucam quando os adversários tentam roubar a bola. É até bom porque a dor significa que está vivo.
A liderança que levou o Charly adolescente a comandar um grupo de jovens brigões também ajudou a ser capitão do time. Este espírito ainda se manifestou fora da quadra. O atleta procurou uma garota que ficou paraplégica depois de cair de moto. Assim que bateu a cabeça no chão e viu o capacete arrebentar, Yeni Paola Salas, 21 anos, sabia que não ia mais andar.
Encontrou guarida no esporte. Decidiu levar a coisa a sério depois que Charly explicou as mudanças e a melhora na qualidade de vida que podia conseguir. A garota foi parar na seleção e nem se importa com a violência do esporte. "Nunca fui uma mulher suave", resume.
Quando está em ação ela cai para dentro e não se intimida com os homens, que logo aprenderam a não dar moleza. Charly diz que tratamento diferenciado somente fora do campo. No jogo o bicho pega e se der moleza Yene passa por cima. O que capitão parece não ter se dado conta é que virou exemplo positivo.