UOL Esporte - Pan 2007
UOL BUSCA

20/07/2007 - 07h42

Desertores ou "gatos", haitianos jogam contra desmanche

Rodrigo Bertolotto
Enviado especial do UOL
No Rio de Janeiro

Metade da delegação do Haiti no Pan volta para o país caribenho se a seleção de futebol masculino não vencer a Jamaica (líder do grupo C) neste sábado e acontecer uma combinação de resultados que garanta sua passagem para as semifinais.

Rodrigo Bertolotto/UOL
Lance do jogo em que o Haiti perdeu para a Colômbia no CFZ
Rodrigo Bertolotto/UOL
Único mulato do time, Nicolas Perou (d) alonga antes da partida
Rodrigo Bertolotto/UOL
Ministro do Esporte e presidente do Comitê Olímpico Haitiano
Rodrigo Bertolotto/UOL
O trio de jornalistas que cobrem o Pan para o país caribenho no CFZ
Rodrigo Bertolotto/UOL
O técnico do Haiti, Jean Yves Labaze, dá instrução durante o jogo
HERÓI DO JUDÔ
MAIS FUTEBOL NO PAN
A certeza que eles retornarão, contudo, não é grande, afinal, na última viagem que esse mesmo time sub-20 fez 12 jogadores tentaram desertar na escala em Nova York (EUA), quando seguiriam para um torneio no Coréia do Sul, em junho. "Eles se perderam no aeroporto porque foram comprar alguma coisa e se desencontraram da gente", desconversa o técnico Jean Yves Labaze.

Até o FBI entrou no caso para recuperar os meninos. Dois já estavam em Boston e outro em Washington. Descobriu-se que familiares deles alugaram um furgão para a operação, mas os adultos acabaram processados por tráfico de menores. Já os juvenis (alguns deportados, outros seguiram com o time) foram perdoados pela "molecagem". E alguns deles estão na disputa no Rio, porque não havia substitutos e tempo para aprontar passaportes e vistos.

Um deles é Nicolas Perou, único mulato no time e morador do hoje decadente bairro de Delmar, na capital Porto Príncipe. A cor da pele e o endereço denunciam uma melhor condição de vida. "Gostaria de encontrar Roberto Carlos aqui. Sou lateral e procuro copiá-lo", afirma o menino que sonha jogar no Chelsea.

Em outro extremo está Gilberto Sylvain, morador de Cité Soleil, o bairro mais violento do país mais pobre das Américas, dominado por gangues armadas que afugentam até as forças das Nações Unidas lideradas pelo Brasil. "Não se escolhe morar lá: se é obrigado. Quero fazer sucesso para sair dali, jogar no Barcelona, na Copa do Mundo", sonha o garoto de 20 anos.

"É uma realização estar no Brasil. Nunca tinha saído de Porto Príncipe", diz o garoto. Para os haitianos, viajante é quase sinônimo de imigrante, único produto de exportação do país que vive da agricultura de subsistência e não tem recursos minerais (as florestas estão devastadas para a madeira é a principal fonte de energia).

Tanto Nicolas quanto Gilberto têm a mesma data de nascimento na inscrição do Pan. Outros cinco jogadores da seleção também constam como nascidos em 1 de janeiro de 1987, a data limite para estar numa seleção sub-20 (no Pan, as equipes são até 20 anos, com possibilidade de três adultos). A coincidência fez surgir nova polêmica: o time estaria cheio de "gatos", jargão para atletas que alteram idade para jogar em times juniores. "Suspeita de fraude no time do Haiti" manchetou o periódico carioca "Jornal do Brasil".

INCRÍVEL EXÉRCITO
Além dos 34 competidores (16 do futebol, 11 do atletismo, quatro do judô, dois do boxe e um do taekwondo), a delegação haitiana no Pan conta com dez dirigentes e três jornalistas.

Dois dos três repórteres tiveram os custos pagos pelo comitê organizador ao Rio. Dodeley Cerelus e Henry Chery trabalham para rádios (Solidarité e Megastar), o meio de comunicação mais importante no país miserável e com 50,2% de analfabetos na sua população. Já Jean Mary Yolda faz seus informes para o canal Telemax. Ela era que mais vibrava nos jogos, gritando "mon dieu" ("meu deus") a cada lance perigoso dos rivais.

Entre as autoridades se destaca o ministro do Esporte, Fritz Belizaire. Seu terno bem cortado lhe proporcionou a melhor proteção para as muriçocas na partida ocorrida no campo do ZFC. Sempre a seu lado, seu diretor de ministério Daniel Charles, portando tranças rastafaris. Também veio o presidente do comitê olímpico, Jean Edouard Beker, único metisse (mulato) entre as autoridades presentes, todos hospedados em hotéis cinco estrelas da Barra da Tijuca.

Se o governo brasileiro não ajudou na preparação dos atletas haitianos (à exceção do time de futebol, os outros vivem ou treinam nos EUA), o Co-Rio proporcionou muita comodidades para os cartolas visitantes, incluindo passagens aéreas e hospedagem de frente para o mar.
Novamente um desmentido oficial. "Essas datas estão erradas. Vamos pedir uma revisão oficial para acabar com essa confusão. Nosso time é sub-17. Mostramos os passaportes antes do jogo contra a Argentina, mas anotaram errado", argumenta o técnico Labaze.

O empate em 1 a 1 na estréia com os argentinos não foi encarado como um feito. "Nós não empatamos com a Argentina. Eles que empataram com a gente. Foi a gente que abriu o placar ", estufa o peito o treinador. "Na economia, somos pobres. Mas com a bola nos pés, devemos nada a ninguém", completa.

Mas contra a Colômbia sub-20, os haitianos não resistiram e perderam por 1 a 0. "Esses colombianos é que têm 22 ou mais anos. São muito grandes para a categoria", se queixou, ao final da derrota, o "antrenè", termo em creóle, corruptela do francês "entraineur", para o cargo de treinador.

A opinião foi seguida pelo melhor jogador, capitão e "mitan teren" (meio-campo) Joseph Peterson. "Foi um jogo muscular, muito duro. Mas, no segundo tempo, não conseguimos acompanhar", disse o menino que arrancou palmas dos 50 pagantes no clube CFZ, última a ser designada e menor sede do Pan-Americano, instalada em território do clube de Zico no Recreio dos Bandeirantes.

Sobre o gramado esburacado e com grama seca de lá, "La Bicolore", como é conhecida a seleção haitiana, fez ouvir o creóle em campo. O goleiro Dorleans Shelson gritava "y´ap rive" ("eles estão chegando") a cada ataque rival. O técnico Labaze berrava "kabrè" ("dribla"). Já Peterson berrava "uwen là" ("estou aqui") a cada contra-ataque.

Peterson é parte de uma minoria na Haiti. No país apaixonado pela seleção brasileira (a visita da equipe dos Ronaldinhos em 2004 foi usada pelo governo de Lula para que a população local simpatize com as tropas brasileiras), o meia é torcedor da Argentina. "Meus irmãos gostavam do Maradona e me fizeram fã deles", explica.